É importante cultivarmos a percepção espiritual em tudo o que fazemos. Torna-se cada vez mais claro que essa importância não é menor em relação ao mundo do cinema e a todas as facetas das artes e do espetáculo. Que influência exercem sobre nós os filmes que vemos? É possível tirar algum benefício dos filmes? Em que medida o cinema pode ajudar a elevar o nível da sociedade? Será que o público tem alguma responsabilidade nisso? Essas são algumas das questões que discutimos recentemente com crítico de cinema do The Christian Science Monitor. O Sr. Sterritt é professor de cinema na Universidade de Long Island, estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Durante vários anos ele fez parte da comissão selecionadora do Festival de Cinema de Nova Iorque.
Vocêdiria que o cinema funciona como espelho da sociedade ou acha que ele tende a aumentar o que há de pior na sociedade, contribuindo assim para piorar nossos problemas? Eu diria que aumenta o que há de pior, mas também o que há de melhor. Aumenta tudo. Os filmes “transcendem a vida”. Eles enaltecem o bom, o ruim, o feio, o bonito.
Assistindo aos filmes e à televisão, podemos perceber o que está errado em nossa sociedade. Vemos o crime e a emotividade irracional da luxúria, da violência, ou mesmo da raiva e do medo. Aí estão todas essas coisas retratadas nos filmes, mas também vemos o bem, as pessoas aspirando ao bem, a fazer com que tudo dê certo, o desejo de estabelecer a harmonia, de expressar amor, de criar laços com a comunidade. Estamos tão acostumados a isso, que nem o notamos mais. As pessoas dizem que entramos em estado de torpor frente ao mal. Vemos tanta violência, que ela deixa de nos impressionar, simplesmente a aceitamos. Acontece que ficamos da mesma forma entorpecidos frente ao bem. Estamos muito acostumados ao final feliz convencional — a romântica jornada rumo ao pôr do sol, o abraço dos enamorados. No entanto, é justamente a isso que aspiramos, pois afinal o amor e a comunidade são as coisas que realmente têm valor. Precisamos estar mais dispostos a ver o bem retratado na tela, que é uma indicação daquilo que é real e permanente.
Até que ponto, em sua opinião, existe na indústria cinematográfica de hoje uma motivação mais elevada, um impulso maior do que o de ganhar dinheiro? Até que ponto existem nesse campo pessoas cujo maior ideal é o de elevar a humanidade? Eu não procuraria toda uma corrente de pensamento mais avançado, no campo do cinema e da televisão comerciais. Estes são empreendimentos com fins puramente lucrativos. Isso não significa que sejam intrinsecamente maus. Significa apenas que eles têm de funcionar dentro de certos parâmetros. Aliás, quanto maior a influência da busca do lucro, mais problemas encontramos nos meios de comunicação de massa.
Algumas pessoas conseguem criar obras inteligentes, às vezes até alentadoras e perspicazes, mantendo-se dentro desses limites comerciais. A maioria dos profissionais, porém, não consegue. É principalmente fora da grande indústria cinematográfica que eu procuro aqueles trabalhos espiritualmente iluminados, que proporcionam elevação e profundidade de pensamento. Isso não significa que essas obras estejam fora do alcance da maioria das pessoas, especialmente nesta época da televisão a cabo e do videocassete. Muito provavelmente, porém, não são exibidas nas salas de cinema de sua vizinhança. Há pessoas por aí, e sempre houve, algumas nos Estados Unidos, algumas em outras partes do mundo, que estão criando obras a partir de suas próprias convicções mais profundas, a partir daquilo que sentem em seu coração. Existem pessoas assim.
Você poderia dar o exemplo de um filme que, em sua opinião, tenha exercido considerável influência positiva, tenha realmente mudado para melhor a vida de algumas pessoas? É muito difícil medir essas coisas e trazer exemplos específicos de filmes que tenham modificado a vida de alguém. Mesmo que encontrássemos um exemplo desse gênero, surgiria a pergunta: a mudança foi por um dia, um mês, um ano? Foi permanente ou durou dois ou três minutos?
Não quero fugir do assunto, mas sabe-se que algumas pessoas sentem-se muitas vezes realmente diferentes, ao assistir a um filme que defende uma boa causa ou uma idéia espiritual. Mas é um sentimento duradouro? Elas realmente modificam sua maneira de viver ou de pensar?
Falando de exemplos, e eu estava pensando nisso recentemente, o que me vem à mente é o trabalho de Horton Foote, que passou toda a vida no mundo do cinema, teatro e televisão. O que ele fez, eu acho, foi infundir numa arte profana valores religiosos da mais alta qualidade. É raro alguém conseguir isso. Ele se afastou da grande indústria do cinema, durante muitos anos, após ganhar o Oscar da Academia como roteirista do filme O sol é para todos (To Kill a Mockingbird). Ele se afastou, não por cinismo, nem por enfado. Continuava interessado nos filmes que eram produzidos, ia muito ao cinema, mantinha-se a par do que acontecia nesse campo, na qualidade de cidadão. Mas os filmes exploravam alguns dos aspectos negativos de nossa sociedade, e ele não queria ter parte nisso. Assim, ficou esperando sua vez, e nesse período escreveu nove peças de teatro. Voltou ao mundo do cinema quando sentiu o clima mudar, escreveu A força do carinho (Tender Mercies) e ganhou outro Oscar. O interessante é que sem dúvida não houve nenhum tipo de transigência nos valores. Logo, isso prova que boas coisas também acontecem na grande indústria do cinema — O sol é para todos era uma produção da grande indústria, assim como A força do carinho. Mas ele teve de deixar a grande indústria durante todos aqueles anos, pois ela havia se afastado demais daquilo que era a grande força de Foote.
Ele conseguiu causar bom impacto num meio de comunicação tão visual, como é o filme. Um impacto positivo, que traz à tona concepções espirituais. Vemos gente vencendo a solidão, o medo e falhas humanas da pior espécie — vencendo pelo amor. Há uma grande dose de espiritualidade e esclarecimento.
Aqui chegamos a um aspecto que parece não ter relação com o que estamos falando, mas tem. O cinema é um meio de comunicação muito materialista. A única maneira de conseguir mostrar algo na tele é fotografando-o, e só coisas materiais podem ser fotografadas. Por isso, o desafio é trazer para a tela algo maior, mais elevado, mais profundo, muito mais profundo, para ser incorporado à nossa percepção deste mundo em que nos encontramos. Alguém como Horton Foote consegue fazer isso com bastante brilhantismo. Outros cineastas também conseguiram, ele não é o único, absolutamente. Talvez ele o tenha feito de uma forma com a qual o espectador americano se identifica mais.
Outro exemplo é o do cineasta francês Robert Bresson, que fez um filme baseado numa história real, Um condenado à morte escapou, a respeito de um homem num campo de prisioneiros de guerra. Ele está na solitária e elabora um plano enorme e complicado para fugir. De repente, pouco antes de ele colocar seu plano em ação, outro prisioneiro é colocado na mesma cela com ele: um jovem que ele jamais vira antes. O homem tem de determinar se o jovem é um espião incumbido de descobrir e denunciar seu plano de fuga, ou se é apenas outro prisioneiro colocado em sua cela por acaso. Chega finalmente à conclusão de que, como pessoa de pendores espirituais, ele só poderia confiar no outro homem e torná-lo partícipe de seu plano, compreendendo que o rapaz deve estar ali por algum bom propósito. Realmente, vemos depois que o prisioneiro não poderia ter escapado, se não fosse pelo companheiro e se nele não tivesse confiado.
Veja, parece uma história de suspense e, de certa forma, é isso mesmo. Por outro lado, Bresson fez o filme para dar a mensagem de que o bem-estar do indivíduo acaba sendo uma questão de fé, uma questão de confiança, de amor, mesmo quando é sua vida que está em jogo e ele está preso num campo dirigido por pessoas que o odeiam.
Qual você acha que deveria ser nossa atitude ao ver um filme? Devemos esperar algo, especificamente? Existe uma maneira de ser um espectador inteligente, assim como há o leitor inteligente? Essa é uma boa pergunta. Os filmes são feitos com muita astúcia, muitas vezes procuram nos manipular de todas as formas. Por isso, minha resposta tem dois aspectos. Primeiro, assista ao filme consciente dessa manipulação. Mantenha em mente que os filmes são muito aptos para manipular suas emoções em todos os momentos. Mesmo que você esteja pensando: “Não vou me deixar levar pela história e ficar com lágrimas nos olhos, sei que o filme está só manipulando emoções”, é provável que quarenta segundos antes, esse mesmo filme tenha manipulado seus pensamentos de uma forma tão mais sútil, que você nem percebeu. Não se esqueça disso. Esteja alerta, não permita que o filme o trate como um cão amestrado, que age por reflexo condicionado. Lembre-se de que o filme tem atrás de si décadas de experiência na arte de fazer as pessoas sentirem e pensarem de determinadas maneiras, pelo menos na hora em que estão ali diante da tela.
Ainda mais importante do que isso, talvez, é você assistir ao filme estando preparado para lidar com o mal, para lidar no sentido pleno da palavra, e para aceitar o bem e beneficiar-se dele. Esteja preparado para rejeitar o mal, para corrigi-lo e rechaçá-lo em seu próprio pensamento, na mesma hora. Lembre-se, ao ir ao cinema, você não está isolado. Você influencia as pessoas à sua volta. Em segundo lugar, porém, e isso é algo importante para os que já se desiludiram com o cinema e não vão mais, pense que é possível que o filme contenha alguma coisa boa. É possível que exista nele algo que eleve, algo que talvez até possa ajudar seu progresso espiritual. Um dos filmes mais desprezíveis que eu já vi foi um da série Rambo. É um bom exemplo de filme a ser assistido do mesmo modo como um cachorro observa uma cobra. Fique de olho na próxima cena e esteja pronto para rechaçá-la em seu pensamento. Por outro lado, podemos assistir a um filme como No dia dos namorados (On Valentine’s Day), de Horton Foote, e ver pessoas enfrentando graves problemas e vencendo-os pelo poder do amor.
Você tem algum comentário a fazer sobre o futuro da indústria cinematográfica? Que rumos ela está tomando? Que rumos você gostaria que ela tomasse? Às vezes, vejo coisas no cinema que me fazem sentir melhor. Histórias de pessoas que procuram desesperadamente elevar-se para planos superiores àqueles em que a sociedade os coloca. O simples fato de que esses filmes existem, sempre me deixa esperançoso quanto ao futur
