Quando se constata que os livros de Jonas e Daniel, cuja data de publicação é incerta, lidam com períodos históricos bem anteriores, a inclusão deles neste estágio da profecia hebraica merece ser justificada. Cada um deles foi escrito com o objetivo de estabelecer a percepção da onipotência e onipresença de Deus e de fortalecer a fé nEle.
O livro de Jonas, não resta dúvida, tinha por fim instruir para ilustrar o amor universal e a ternura de Deus para com o mundo gentio (não-judeu), e muitas vezes é descrito como o livro mais cristão do Antigo Testamento. O livro de Daniel, por sua vez, procurava animar os judeus repetindo-lhes a narração de acontecimentos que vinham ocorrendo na Babilônia durante o exílio e, de acordo com as visões de Daniel, aqueles acontecimentos que se verificariam na Palestina após o fim do exílio.
O livro de Daniel, embora profético, é em parte apocalíptico, sendo que na última metade tem redação intencionalmente obscura a fim de proteger sua mensagem. O livro de Jonas, por outro lado, pode ser encarado como alegoria ou parábola.
Nas primeiras palavras do capítulo inicial, o Senhor ordena a Jonas que vá a Nínive, capital do império pagão da Assíria, e denuncie sua iniqüidade (ver Jonas 1:1, 2). Não se sentindo disposto a aceitar a tarefa que lhe fora designada, o herói da história foge de Jope, na costa da Palestina, num navio que se dirigia a Társis, que se presume fosse na Espanha (a mais distante localidade para onde poderia ir em direção oposta a Nínive, localizada centenas de quilômetros terra adentro), acabando por se defrontar com uma tempestade tão forte que todos os marinheiros previam que iriam morrer afogados. Tomados de terror eles concluíram que a tempestade representava uma provação divina contra toda a tripulação do navio devido ao pecado cometido por alguém a bordo. Segundo antigo costume, lançaram sortes a fim de descobrir a identidade do culpado, e a sorte recaiu em Jonas. Já ele declarara aos marinheiros “que fugia da presença do Senhor” (1:10).
Tendo sido infrutíferos os esforços feitos para salvar o navio, os homens, conquanto pagãos, depois de muita relutância concordaram com a sugestão de Jonas de que o lançassem ao mar. Não só os marinheiros e seu capitão foram salvos, como também Jonas foi protegido; pois, segundo consta na história, “deparou o Senhor um grande peixe, para que tragasse a Jonas; e esteve Jonas três dias e três noites no ventre do peixe. Então Jonas do ventre do peixe orou ao Senhor, seu Deus”, e viu-se lançado em terra seca e a salvo. (Ver 1:17; 2:1, 10.)
Jonas foi outra vez incumbido da missão que originalmente lhe fora destinada. Obedecendo por fim, dirigiu-se a Nínive e anunciou que, por ordem de Deus, dentro de quarenta dias aquela cidade seria destruída (ver 3:1–4). No entanto, para consternação do profeta, como o rei e todos os seus súditos reunidos passassem a crer em Deus, jejuando e vestindo-se de saco em sinal de arrependimento, o Próprio Senhor perdoou pronta e plenamente a todos eles (ver 3:10).
Claro está que o profeta não conseguia entender nem apreciar essa conversão repentina. De fato, “desgostou-se Jonas extremamente, e ficou irado”, e declarou que se sua denúncia contra Nínive fosse revogada por Jeová, ele preferiria “morrer do que viver” (4:1–3). O conforto proporcionado pela sombra bem-vinda projetada por planta de rápido crescimento que se estendera sobre a enramada erguida por Jonas, e de onde o profeta esperava observar a queda da cidade, até mesmo esse conforto foi aproveitado por Jeová para instruir o profeta e através dele o leitor (ver vv. 5–11).
Se o livro foi realmente compilado por volta dos anos 300 ou mesmo 200 a.c., como muitos mestres asseveram, na época em que os judeus e seus sacerdotes estavam ficando cada vez mais exclusivistas e se opunham aos estrangeiros, talvez represente a imparcialidade do Próprio Deus, que poupa misericordiosamente a notória, mas arrependida, cidade de Nínive, bem como Jonas desobediente e irado. O profeta, em sua petulância e seu dogmatismo, não se dispusera a dar a conhecer a todos a mensagem universal de salvação que o Senhor oferecera com tanta liberalidade.
Como acontecimento histórico a queda de Nínive ocorreu por volta de 612 a.c., embora o tema do livro de Jonas represente com maior exatidão a atitude mental de um período que talvez lhe fosse três séculos posterior.
A pergunta com que o livro chega ao fim (ver 4:10, 11) põe claramente em destaque o desafio divino ao pensamento religioso de todos os tempos. De fato, em toda a sua mensagem de perdão e generosidade encontra-se um elo evidente que liga essa mensagem aos ensinamentos do Novo Testamento.
O livro de Daniel, que por tradição se acredita ter sido escrito pelo próprio Daniel no sexto século a.c., hoje é encarado, de modo geral, como pertencente a data muito posterior, provavelmente por volta do ano 164 a.c. Apesar de certos fatos históricos inexatos, cobre ele um período de vasto interesse histórico que vai do sexto ao segundo século a.c.
Destoando de livros proféticos anteriores, que alertavam sobre a aproximação do exílio e apregoavam a necessidade de reforma e redenção, o livro de Daniel adota a perspectiva do passado. Ao relembrar acontecimentos passados de sua história como se fossem vistos ou preditos numa época anterior, quando os judeus se achavam em meio a perseguições numa terra estranha, procura ele consolar e animar seus leitores a manter inabalável sua fé no Deus de seus pais. Essa mensagem que proclamava lealdade a qualquer preço era particularmente necessária no decorrer do segundo século a.c., época em que a idolatria pagã e a cultura grega estavam sendo impostas ao povo hebreu, cuja religião vinha sendo suprimida.
De acordo com o livro como ele é hoje apresentado, foi no reinado de Jeoaquim, rei de Judá (609 a 598 a.c.), que Nabucodonosor (às vezes grafado Nabukudurri-usur), monarca babilônio (ou caldeu), sitiou Jerusalém, capturando muitos dos seus habitantes, deportando para a Babilônia Daniel (que significa “Deus julgou”) e seus três amigos, Hananias, Misael e Azarias, entre outros que poderiam ser aproveitados na corte do invasor.
Na corte da Babilônia esses jovens hebreus tiveram permissão para continuar com sua simples dieta vegetariana em vez de se sujeitarem de acordo com o protocolo à rica alimentação real, que para eles significava a certeza de se contaminarem com ela. O governante babilônio foi ficando cada vez mais impressionado com a sagacidade e a sabedoria desses jovens (ver Daniel 1:1, 19, 20). Quando o rei se perturbou devido a um sonho terrível, só Daniel, dentre todos os seus sábios, foi capaz de contar o sonho e decifrar o seu significado.
Daniel interpretou a cabeça de ouro da imagem que o rei vira durante o sonho como o próprio Nabucodonosor cujo poder e influência vieram do “Deus do céu” (2:37). As partes da imagem que eram feitas de prata, bronze, ferro e barro, materiais de valor decrescente, significavam reinados temporais sucessivos. A grande pedra que destruiu a imagem, Daniel interpretou como invencibilidade divina. “Nos dias destes reis, o Deus do céu suscitará um reino que não será jamais destruído” (v. 44).
O louvor impulsivo de Nabucodonosor a Daniel e seu Deus foi seguido da nomeação de Daniel e seus amigos para posições importantes na corte. Contudo, logo a seguir veio o decreto de que todos tinham de adorar uma enorme imagem de ouro, que o rei erigira (ver cap. 3). Quem quer que não adorasse tal imagem seria lançado na fornalha sobremaneira acesa. Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, como eram chamados pelos caldeus os três amigos de Daniel, recusaram-se a cumprir o decreto, mas escaparam ilesos da fornalha em que haviam sido lançados. O rei reconheceu outra vez o poder de Deus e promoveu os jovens hebreus.
No 5º capítulo o autor conta como Belsazar, príncipe ulterior da Babilônia, deu grande festa, nela profanando os vasos de ouro sagrados que Nabucodonosor havia tirado do templo de Jerusalém. Para surpresa e terror do rei (vv. 5 e 6) apareceu ali a mão de um homem que escrevia na parede. Como aconteceu na experiência de Nabucodonosor, os sábios da Babilônia não conseguiram ler nem entender o que fora escrito. Outra vez Daniel teve êxito fornecendo a resposta.
Visto que a inscrição críptica, feita em aramaico, era constituída apenas de consoantes, o leitor tinha de acrescentar as vogais certas antes de poder decifrar a mensagem. Por isso em MENE, MENE, TEQUEL e PARSIM, Daniel leu esta mensagem: “Contou Deus o teu reino, e deu cabo dele. ... Pesado foste na balança, e achado em falta. ... Dividido foi o teu reino, e dado aos medos e aos persas” (5:26–28). Mais uma vez Daniel recebeu a aclamação real, enquanto que “naquela mesma noite foi morto Belsazar, rei dos caldeus. E Dario, o medo, ... se apoderou do reino” (vv. 30 e 31).
As histórias do heroísmo de Daniel e de seus amigos são mais conhecidas dos leitores da Bíblia do que suas visões enigmáticas e revelações registradas nos capítulos restantes (7–12). Se considerarmos o livro de Daniel como tendo sido escrito no segundo século a.c., esses símbolos e visões apocalípticos talvez tencionem descrever acontecimentos contemporâneos do autor, e a eles se referir, os quais, segundo ele esperava, haveriam de culminar na derrota da tirania e no estabelecimento final do reino de Deus sob o governo do “Filho do homem” (ver Daniel 7:13, 14; conf. Mateus 16:28; Apoc. 1:13).
Embora a divulgação dos trechos intencionalmente obscuros se referisse à ascensão e queda de impérios terrestres — babilônio, medo, persa, greco-macedônio — e em particular se reportasse à opressão dos judeus sob o grego Antíoco Epifanes, que subiu ao trono no ano 175 a.c., fácil é constatar por que esses capítulos foram aceitos como estendendo-se, em sua aplicação, a todas as épocas.
Escrito pouco depois que a perseguição de Antíoco chegara ao seu auge no ano 168 a.c., com partes em hebraico e partes em aramaico — língua conhecida por todo o império persa e cada vez mais adotada pelos judeus após o exílio — o livro de Daniel contém muitos conceitos preciosos, entre os quais os seguintes: o pensamento de que o reino de Deus é universal; a inclusão do nome de dois anjos, Miguel e Gabriel; ênfase na prática da oração e em sua eficácia e na humildade em contraposição ao orgulho; e a mais clara referência contida no Antigo Testamento quanto à ressurreição (ver Daniel 12:2, 3).
No livro de Jonas, desafia-se a exclusividade da fé hebraica; enquanto que o livro de Daniel advoga em favor do seu potencial de universalidade.
