PARTICIPANTES DA CONFERÊNCIA DE HAMPTON COURT
Jaime escolheu a dedo os quatro representantes puritanos que assistiriam à conferência de Hampton Court. Só convidou elementos dispostos a apoiar a Igreja Anglicana. Excluiu cabeças quentes que, ele sabia, se oporiam à condescendência necessária para conseguir a unificação da Igreja. Os quatro puritanos que Jaime convidou à conferência eram todos notáveis estudiosos da Bíblia, homens que acolheriam com prazer uma nova tradução das Escrituras para o inglês. Aliás, dois deles, John Rainolds e Laurence Chaderton, vieram mais tarde a exercer papéis preponderantes na nova tradução.
O primaz da delegação puritana foi Rainolds, líder do movimento puritano em Oxford. Era muito conhecido, no meio universitário, como conferencista, escritor e pregador, assim como mestre de retórica e gramática grega, “totalmente viciado. .. no estudo das Sagradas Escrituras”.
Chaderton chefiava o movimento protestante radical em Cambridge. As autoridades eclesiásticas o repreendiam com freqüência, por violar tradições ritualistas no Colégio Puritano Emanuel, onde era mestre. Mas era uma pessoa tratável e simpática, fiel anglicano, no fundo. Além disso, Chaderton era eminente estudioso da Bíblia, que passava horas incontáveis estudando Latim, Hebraico e Grego. Depois, transformava esse conhecimento em sermões apaixonados e diretos, que levavam os ouvintes às lágrimas.
Os outros dois puritanos convidados à conferência, John Knewstubb e Thomas Sparke, também eram eminentes professores. Knewstubb escrevera tratados puritanos contra grupos extremistas, como os católicos e os da “Família do Amor”. Sparke também havia escrito panfletos controvertidos, contra os católicos. Nenhum dos dois, porém, deixava que suas opiniões interferissem com a lealdade à Igreja Anglicana. E ambos estudavam ardorosamente a Bíblia.
Para contrabalançar o contingente puritano na conferência de Hampton Court, Jaime convocou o Arcebispo da Cantuária, John Whitgift, oito bispos e dez outros eclesiásticos eminentes da Igreja inglesa. Embora fossem, na maioria, opositores convictos do puritanismo, estavam abertos a aceitar correções das “coisas confusas em nossa Igreja”.
Certo número desses clérigos era composto de bons estudiosos da Bíblia, sem dúvida propensos a aceitar a idéia de uma nova tradução das Escrituras. E realmente, sete deles se juntaram à equipe que mais tarde trabalhou na tradução. Havia anos que o Arcebispo Whitgift vinha acalentando a idéia de uma nova tradução da Bíblia, mas não conseguira obter o apoio da Rainha Elizabeth para seu projeto. Outro importante membro do clero, que se preocupava com o futuro da Bíblia em inglês, era o Bispo Thomas Bilson, que estava indignado com o que ele denominava “vão espetáculo” dado pelos católicos com o Novo Testamento de Rheims. O Bispo John Overall era conhecido internacionalmente como erudito em língua hebraica e perito no estudo do cativeiro na Babilônia.
Depois, naturalmente, havia o grande Lancelot Andrewes, decano da Abadia de Westminster. Este ganhara uma das primeiríssimas bolsas de estudo para o Grego e Hebraico, oferecidas pela Universidade de Cambridge, e era famoso por conhecer também Latim, Sírio, Caldeu e Árabe, além de uns quinze idiomas modernos. Andrewes percebia a inutilidade de se insistir na Bíblia dos Bispos. Por isso, em seus sermões retumbantemente metafísicos, tinha abandonado, de longa data, o texto da Bíblia dos Bispos em favor da Bíblia de Genebra ou de trechos por ele mesmo traduzidos.
Talvez mais do que qualquer outro dos presentes à conferência, Andrewes teria apreciado o sonho do rei de se chegar a uma Bíblia ecumênica. Ele era um pacificador do fundo do coração, tanto quanto o rei. Não via motivo para irmãos cristãos brigarem entre si sobre pontos de vista doutrinários, e certa vez escreveu: “Se houvesse a consciência daquilo que está acima da controvérsia, daquilo somente que é fundamental à salvação cristã, haveria um caminho de paz em que todos concordariam, mesmo em meio a um mundo de controvérsias.” Sem dúvida, Andrewes era o pregador favorito do rei. Sabia-se que o rei costumava dormir com um dos sermões de Andrewes debaixo do travesseiro.
COMEÇA A CONFERÊNCIA
Na véspera da conferência, Jaime ofereceu uma pequena recepção a todos os participantes. Alguns deles já estavam em Hampton Court havia aproximadamente um mês, tinham celebrado as festas de Natal com o rei, enchendo os 1.200 aposentos do palácio com alegria e comemorações natalinas. Alguns dias antes, Shakespeare havia apresentado uma de suas peças aos hóspedes reunidos.
No primeiro dia da conferência, todos os participantes se reuniram nos aposentos particulares do rei. Após algumas observações preliminares, o rei, sem muita cerimônia, dispensou os quatro puritanos de todas as atividades daquele dia. Depois disso, conferenciou em particular com as autoridades eclesiásticas a respeito das “queixas” dos puritanos. Para surpresa dos presentes, Jaime argumentou a favor da maioria dessas queixas e, como Andrewes mais tarde relatou, “desempenhou maravilhosamente o papel de puritano”. Obteve vitórias significativas em muitos pontos importantes.
No segundo dia da conferência, os puritanos foram finalmente admitidos nas discussões. Eles chocaram os presentes, apresentandose em trajes turcos, em vez das tradicionais vestimentas professorais. Foi obviamente um protesto contra as tradições do clero e das universidades. Conforme relato de uma testemunha ocular, Jaime fez-lhes um “substancial e terno discurso” e convidou-os a apresentarem suas reivindicações.
Imediatamente, John Rainolds, o porta-voz do grupo, prostrou-se de joelhos e apresentou a causa puritana, resumindo todos os pontos da Petição Milenária. Jaime foi impaciente com Rainolds, mas acedeu a muitas das solicitações dele. Concordou com modificações importantes no Livro de Orações e na liturgia da igreja. Apenas três das solicitações dos puritanos receberam resposta totalmente negativa.
A reação das autoridades anglicanas às propostas de Rainolds foi azeda. O Bispo Bancroft, de Londres, atacou Rainolds repetidamente, defendendo a hierarquia e as cerimônias da igreja. Jaime também insultou o grupo de Rainolds, classificando suas exigências como “bastante vazias e frívolas”. Fez isso para impressionar os bispos, a quem não queria ofender.
PROPOSTA PARA UMA NOVA BÍBLIA
Finalmente, como Jaime estivesse falando de unanimidade e pacificação no seio da Igreja, Rainolds viu chegada a oportunidade de propor uma idéia que lhe era cara: — “uma nova tradução da Bíblia.” Ele argumentou que isso traria vantagens políticas ao rei. Citou diversos casos de má interpretação das traduções anteriores, e mostrou como cada uma delas havia aberto o caminho à desobediência civil — a coisa que Jaime mais temia neste mundo.
Uma dessas interpretações errôneas citadas por Rainolds, foi a de Salmos 105:28, onde o significado do texto grego (“Eles não foram desobedientes”) elogia os israelitas por obedecerem a Deus, ao passarem por provações no Egito. De acordo com Rainolds, a tradução dos Bispos realmente inverte o sentido e afirma que os judeus “não foram obedientes”. Para Jaime, tal erro de tradução seria pura e simples traição, levando o indivíduo a pensar que, em determinadas circunstâncias, não precisa obedecer a Deus, nem ao rei, como representante terreno de Deus.
O Bispo Bancroft foi rápido em opor-se à proposta de Rainolds, bradando que “se fosse seguido o humor de cada um, nunca se terminaria o trabalho de tradução”. Contudo, assim que percebeu que o rei concordava com Rainolds, nada mais disse a respeito.
De sua parte, o Rei Jaime deixou claro que considerava a proposta uma idéia maravilhosa. Disse claramente que não gostava de nenhuma das traduções existentes em inglês, embora achasse que o texto de Genebra “era o pior de todos”. Suas notas marginais, disse ele, eram “sediciosas, perigosas e traiçoeiras”. E foi adiante, citando várias dessas notas que encorajavam “a desobediência aos reis”.
Menos de cinco minutos depois de Rainolds ter sugerido uma nova Bíblia, o rei deu ordem para que “uma tradução uniforme” fosse iniciada imediatamente. E, como se já tivesse tudo planejado, delineou ali mesmo a forma precisa como sua ordem deveria ser levada a efeito. “Este trabalho deve ser executado”, disse ele, “pelos mais sábios de ambas as Universidades (Oxford e Cambridge), depois deles deve ser revisado pelos Bispos e pelos mais eruditos da Igreja.” Continuou, dizendo que a nova Bíblia deveria “ser apresentada ao Conselho da Coroa e, finalmente, ser ratificada por sua régia autoridade. .. .”
Jaime conseguiu agradar quase todos os ouvintes, com seu plano para a tradução. Os professores das duas Universidades, as autoridades eclesiásticas e os conselheiros da Coroa, todos ficaram sem dúvida lisonjeados por terem sido incluídos no projeto. E o próprio Jaime deve ter se deliciado com a perspectiva de ter a palavra final sobre a nova tradução.
A seguir, o rei manifestou a esperança de que a nova Bíblia cumprisse dois propósitos importantes. Primeiro, deveria reunificar a Igreja da Inglaterra, tristemente dividida. Segundo, deveria ajudar a assegurar-lhe suas prerrogativas reais, seu controle sobre o governo inglês. Com esses objetivos em mente, ele declarou especificamente que a nova Bíblia e suas notas marginais deveriam servir de apoio às instituições tanto da monarquia quanto da organização religiosa.
Ao encerrar a conferência, no dia seguinte, Jaime só discorreu sobre a unidade da igreja e a fraternidade, falando de forma tão comovedora, que os participantes de ambas as facções choraram. E suas palavras não eram vazias de significado. Durante o ano que se seguiu, ele deu provas de sua sinceridade quanto à unidade religiosa nacional, levando avante o ambicioso projeto da Bíblia com uma velocidade incrível e energia ímpar. Passo a passo, seguiu o plano delineado em Hampton Court para o lançamento de uma nova Bíblia. Ele pôs todos a trabalhar, ombro a ombro, puritanos e anglicanos, liberais e conservadores, líderes das universidades e da igreja, visando a “uma tradução uniforme” da Bíblia. Ao fazer isso, ele manteve vivo um elemento muito especial: o espírito ecumênico que estivera presente em Hampton Court.
