O Evangelho de João foi o último a ser escrito. Estima-se que João tenha vivido entre os anos 3 e 98 da Era Comum. Ele havia se mudado para Éfeso e foi nessa cidade que escreveu seu evangelho, entre os anos 90 e 95 da E.C.
Capítulo 1: A declaração de abertura de João nos arrebata como o tema de uma inesquecível e portentosa sinfonia, que soa tão original e nova, de forma a parecer sui generis. Somente mais tarde é que ela nos faz lembrar de passagens de Gênesis 1, Provérbios 8 e Apocalipse 19, para mencionar apenas alguns pontos de referência. Essa é uma das características de grandes obras literárias e de arte, que parecem ter surgido do nada, são intrépidas e convincentes em expressão, mas têm suas raízes em elementos de obras que as precederam.
João possui o dom de revestir as idéias espirituais mais profundas com a linguagem da simplicidade. Os versículos 1 a 18 do capítulo 1 são considerados como sendo o Prólogo, ou o Prefàcio, isto é, a Divindade e Encarnação do Verbo e o testemunho de João, ou seja, a natureza do Cristo. Os demais capítulos versam sobre a atividade do Cristo. O versículo de abertura apresenta o tema princiapl do evangelho como sendo o “logos” ou o “verbo” e os demais versículos apresentam outros quatro conceitos que vão aparecer de forma consistente ao longo do evangelho: vida, luz, glória e verdade.
1. Versículo 1: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.”
A escolha de João do termo grego “Logos”, que significa ‘palavra' ou 'verbo', para descrever o Cristo, foi verdadeiramente inspirada, pois esse termo continha um significado marcante tanto para jedeus como para gregos. A essa altura, havia um major número de gregos seguidores de Jesus do que os de origem judaica. O conceito do “Messias” não tinha importância para os gregos. Outro conceito era necessário para atrair a esse público e João desco-briu-o com a palavra ‘logos’. Na filosofia grega, ‘logos’ se constituía em uma palavra importante, usada com freqüência ao se referir à lógica ou à inteligência subjacentes a tudo. Tinha dois significados: a) razão ou inteligência, como existindo interiormente na mente; b) razão e inteligência, expressando-se em palavras. Esse termo era empregado para identificar não somente as palavras proferidas, mas também os pensamentos não proferidos que estavam por trás das palavras. O esclarecimento surge quando o Cristo é chamado de ‘o Verbo de Deus’. Ele é o Verbo interior de Deus porque Ele existe por toda a eternidade ‘no seio do Pai’, um com Ele da mesma forma que o raciocínio é um com a mente que raciocina. Nada é mais íntimo para o homem do que seu próprio pensamento, que está dentro dele e, em certo sentido, esse pensamento acaba se constituindo no próprio homem. O Cristo é também o Verbo exteriorizado de Deus. Ele expressa, explica e revela ao mundo o que Deus é.
Para os judeus, ‘logos’ tinha um grande significado, pois estavam familiarizados com a idéia de que Deus Se revela ao mundo pela Memra, ou Palavra. A memra ou palavra de yhwh (Jeová) foi revelada a Abraão, Agar, Isaque, Jacó e a Moisés. O prefácio de João, portanto, proclamava aos Judeus que a Memra de Jeová, ou seja, a palavra, o verbo de Jeová, que havia aparecido aos patriarcas e profetas, não era outro senão o Cristo, antes de sua encarnação em Jesus. Os estudiosos judeus que falavam grego (os helenistas) estavam familiarizados com os escritos do filósofo chamado Philo de Alexandria, que viveu de 15 A.E.C. a 50 E.C. Esse filósofo acreditava que Deus não agia no mundo diretamente, mas sim por meio do Logos ou Razão. Para o judeu helenista, o Evangelho de João está dizendo que o Logos, por meio do qual Deus age e se revela ao mundo, não é outro senão o Cristo. Muitas vezes, o método judaico de falar com Deus ou sobre Deus, costumava ser o uso da palavra equivalente a ‘logos’, que acabou se tornando um símbolo para Deus, usado em substituiçãi do nome de Deus. Os judeus falavam constantemente da Memra, a palavra ou o verbo de Deus.
Como os gregos, os judeus também associavam esse conceito à sabedoria. O Livro de Provérbios é um exemplo de literatura da sabedoria judaica, em que os conceitos de vida e de luz (sabedoria) estão entrelaçados com o termo ‘a palavra’ de Deus. Os estudioso gregos pagãos também acreditavam em um Logos divino, que se difundia pelo mundo, dispondo todas as coisas em uma ordem racional. Essa filosofia, desenvolvida primeiro por Heráclito, depois por Platão e pelos Estóicos, na era apostólica de João, era a explicação do universo comumente aceita pelos pagãos. Para eles, o prefácio de João está dizendo “que o Logos divino, que havia inspirado os antigos filósofos deles, tinha finalmente Se manifestado na vida de Jesus de Nazaré. Portanto, João conseguiu demonstrar aos judeus que o Cristo, ou Logos, havia se manifestado como a Memra aos patriarcas. Ele também esclarece aos gregos que a inspiração que levou os filósofos gregos a reconhecerem que o universo era governado por uma ordem divina, já era o Logos ou o Cristo, encarnado agora em Jesus. A doutrina do Logos de João só difere das doutrinas judaica e grega, nos seguintes pontos: a) é pessoal e b) se fez carne.
2. Versículo 2: Ele estava no princípio com Deus.
Este princípio não é o mesmo que aparece em Gênesis, o princípio da criação. Aqui se refere a toda a eternidade. É importante salientar que João faz uma distinção entre os dois termos. Embora o Logos esteja com Deus desde o princípio (a eternidade), o Logos não é Deus. Essa distinção é feita com o uso do artigo definido ‘ho’ antes de ‘theos’, a palavra grega para Deus. Os gregos quase sempre usavam esses artigos antes de nomes próprios. João descreve Deus como ‘ho theos’, mas, quando semelhante em qualidade a Deus, ele descreve ‘logos’ simplesmente como ‘theos’. A implicação é que Jesus é semelhante a Deus, mas não é o Deus. João distingue a Jesus dos outros humanos, mas também o faz, até certo ponto, de Deus. Curiosamente, embora nos outros evangelhos Jesus cite a Deus com freqüência, no Evangelho de João, Jesus comenta sobre a autoridade que lhe foi outorgada por Deus, como o Verbo, a inteligência, o agente de Deus, como sendo a porta, o caminho, a verdade e a vida.
A parte II será publicada no próximo mês.
BIBLIOGRAFIA
Institute for Scriptural Study, 159 Madison Avenue, Suite 7J–New York, NY 10016; Brownrigg, Ronald, Who’s Who in the Bible, The New Testament, Bonanza Books: New York, NY, 1980; Comay, Joan, Who’s Who in the Bible, The Old Testament, Bonanza Books, New York, NY, 1980; Dummelow, The Rev. J.R. (ed.), A commentary on the Holy Bible, MacMillan Publishing Co., Inc., New York, NY, 1975; Eiselen, Frederick C. (ed.), The Abingdon Bible Commentary, Abingdon Press, New York, NY, 1929.
