Regina Angélica da Silva é casada e tem duas filhas, de 16 e de 11 anos. É assistente social e trabalha na Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor — FEBEM — há oito anos, cinco dos quais exercendo a função de Diretora da Unidade de Internação IPÊ, identificada pelo número 22, que fica dentro do Complexo Raposo Tavares, em São Paulo, SP.
Na tarde de 6 de abril, a Sra. Angélica dedicou parte do seu tempo a essa entrevista. Convidou a Sra. Coordenadora Pedagógica, uma importante colaboradora, com quem reparte as atividades para resgatar as jovens que estão sob medidas sócio-educativas.
A Unidade IPÊ está, no momento, com 104 internos, cujas idades variam de 13 a 17 anos. Todos são réus primários, pois essa unidade não trabalha com infratores reincidentes. A orientação dada aos internos é regida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O prazo máximo de internação é de três anos.
A Unidade Ipê se destaca por preservar um ambiente sob controle, bem mais tranqüilo do que a maioria das Unidades da FEBEM. Para entendermos melhor como funciona esse sistema de reintegração social, a Sra. Angélica respondeu às seguintes perguntas:
Maranatha Milani: Como você inicia seu trabalho com os internos?
Regina Angélica: Primeiramente, temos de lembrar que eles têm uma referência muito diferente da nossa. Eu não posso exigir deles aquilo que não tiveram. Nosso maior desafio é mostrar o outro lado, que eles desconhecem.
MM: Qual é o lado que você mostra e quais os princípios que você aplica para isso?
RA: Mostro o lado espiritual. Faço com que percebam que o mais importante é a preservação dos valores. Identifico valores morais e éticos. A religião também é muito importante. Nosso desafio é fazer com que eles parem para pensar na vida de outra forma: não só focalizando o lado material, mas o que cada um é interiormente. Tento fazer com que eles se conheçam e percebam o que podem oferecer para a sociedade, independentemente da marca da calça, do tênis ou da camiseta. É preciso que identifiquem seus valores como indivíduos.
MM: Qual a técnica aplicada para esse fim?
RA: Trabalhamos com muitas atividades. A princípio, quando chegam, são muito arredios, por conta de todas as perdas que tiveram e também pela forma como foram apreendidos na rua. Chegam com medo.
MM: Como você consegue se aproximar deles?
RA: Primeiramente é preciso que confiem em você. Vivemos uma rotina normal de uma casa, de forma amigável. Eles têm muitas atividades ocupacionais. Todos vão para a aula, pois temos desde a primeira série do ensino fundamental até o terceiro ano do ensino médio. À tarde, oferecemos, por meio de parcerias com empresas privadas, atividades culturais, esportivas e profissionalizantes, como artes plásticas, artesanato, dança de rua, capoeira, percussão, futebol, vôlei, informática, marcenaria e panificação.
Com a ajuda de grupos de trabalho, vamos nos aproximando. Logo que chegam, um grupo de acolhimento mostra como funciona a unidade, a que podem e o que não podem fazer, além de passar uma noção sobre o processo educativo.
MM: Você tem um relacionamento individual com eles?
RA: Como diretora não tenho como atender aos 104 internos, mas conheço cada um deles pelo nome e sobrenome. Vou quase que diariamente ao pátio para um contato mais próximo e esta é a oportunidade que tenho para desenvolver uma relação com eles. Nossa equipe técnica acompanha caso por caso.
MM: Como você consegue essa aproximação?
RA: Basta ser honesta preciso mais do que isso! Procuro conhecer o ser humano. Eles percebem a honestidade e se aproximam, em busca de ajuda. Há casos em que houve falha familiar. Acontece, às vezes, deles dizerem: "eu nunca conversei com minha mãe como converso com a senhora". Buscamos, então, fazer um trabalho com a família. Às vezes, a mãe não conhece bem os amigos que o filho tem. A equipe técnica, que inclui profissionais de educação e de segurança, trabalha bem entrosada e vamos evoluindo, trocando informações, buscando o todo. Há casos em que podemos dizer que alcançamos o resultado de cem por cento na recuperação do menor.
MM: Qual o tempo necessário para avaliar se o interno já está reformado?
RA: média é de 6 a 9 meses. A maioria leva 9 meses. Costumo brincar dizendo que eles vão nascer novamente. É o tempo de uma gestação. O bom é que conseguimos brincar, sem deixar de levar a sério. Conseguimos fazer com que eles se descontraiam na brincadeira. Eles são crianças e precisam brincar.
MM: Como você consegue separar o interno que está aqui do indivíduo que estava na rua, praticando crime, antes de ser detido?
RA: O primeiro passo é saber que estou aqui como educadora. Aqui você não é a vítima, não é o juiz, não é a mãe dele. Você é o educador. Então, nessa função, tenho de dar muita atenção a tudo o que ele está dizendo. Isso não é só pela boca. Ele diz com atitudes, com o corpo, com o olhar e, o mínimo que temos a fazer é pegar o que ele está dizendo e lhe mostrar onde sua percepção está equivocada. Às vezes, uma rebeldia é um grito de socorro. Se eu entrar aqui com a capa de juiz ou de mãe, não vou conseguir ajudar a ninguém e tenho de ir embora.
MM: Por que você fala de mãe? Como a mãe agiria?
RA: A mãe tende a passar a mão na cabeça e dizer: “o meu filho é um coitadinho”. Por isso incluímos as mães no trabalho de recuperação, para que ela mude sua visão. Ela pode continuar a passar a mão na cabeça, mas estando ao lado dele, deixando de vê-lo como um coitadinho. Ela precisa começar a vê-lo como um ser humano em desenvolvimento que, nessa fase, necessita de apoio, de orientação, de identificação de valores morais, não de paparicação. Quando você ama e quer apoiar, você mostra o erro e impõe limites. A maioria deles está aqui porque não conheceram limites.
MM: Eles aceitam esses limites? Como você lida com a questão do espaço físico fechado?
RA: Individualmente, eles percebem quando ultrapassam os limites. Coletivamente, eles têm atitudes diferentes. Os que estão há mais tempo ajudam, dizendo: “ô mano, não pode fazer isso aqui não”! Quanto ao espaço físico, eles conseguem fazer aqui uma boa reflexão do que causaram lá fora e do prejuízo que causaram a si mesmos, à família e à sociedade atividades culturais e esportivas, eles têm a oportunidade de sair.
Vera Lúcia: De acordo com a atividade que desenvolvem, nós os levamos a parques, estádios de futebol, à Pinacoteca. É uma forma de mostrarmos confiança e esse trabalho tem sido muito positivo. Nunca tivemos problemas. Essa é uma oportunidade para verem que são iguais às outras pessoas, podem desenvolver qualidades independentemente das limitações sociais que lhes foram impostas.
MM: Os internos têm predisposição para se corrigirem?
RA: Nem todos, infelizmente. Mas atingimos um bom número. Quando eles saem, alguns nos dão retorno por meio de cartas ou telefonemas; a família liga e agradece o trabalho.
MM: Apesar dessa unidade ser mais tranqüila, você já passou algum momento difícil?
RA: Recentemente, quando houve a demissão de muitos funcionários, passamos vários dias com uma equipe que tinha somente mulheres para atender aos 104 adolescentes. Resolvi, então, ir ao pátio e dizer a eles:
“É o momento que vocês têm para mostrar que não precisam de contenção. Precisam de atenção”. A franqueza foi a nossa arma, nesses dias difíceis. O complexo tem outras unidades e havia helicópteros sobrevoando a área o dia inteiro.
Eles viram rebeliões nos outros prédios e ficaram muito tensos; tiveram medo do desconhecido. Então, durante 15 a 20 dias, para acalmá-los, íamos ao pátio diariamente para que eles nos vissem. É preciso sabedoria na condução do dia-a-dia, pois o contato com os internos de outras unidades, às vezes, interfere no comportamento, instigando rebeliões.
MM: Você tem alguma base religiosa que a ajude?
RA: Sou espírita, leio muito, vou a encontros religiosos, leio os Evangelhos e os aplico, inclusive em casa. Acredito que Deus existe e que nos enviou Seu filho Jesus Cristo para nos mostrar o caminho do bem. Não é possível conceber o mundo de outra forma. Sinto que estou sempre com Deus e digo que esta unidade é abençoada. O trabalho da Christian Science que vem sendo feito pela Rita Grigorowitschs, também faz parte. Há internos que conseguem ter uma relação de conversa com ela e não comigo. Trabalhamos em conjunto e nos ajudamos mutuamente, pois a meta é a mesma. Essa integração existe em tudo e a harmonia da equipe reflete no resultado do trabalho e no ambiente, de uma forma geral.
MM: Como você trabalha a questão do bom e ruim no pensamento deles?
RA: Às vezes, vemos que um menor está triste e ele explica que é porque não recebeu a visita da mãe. Nós o ajudamos a pensar nos motivos que puderam levá-la a isso. Pode ser um problema inesperado, a falta de dinheiro para a condução, etc. Outro exemplo: “vou passar o Natal aqui”. O Natal é uma data muito crítica. Aconselho a pensarem assim: “esse é o primeiro e o último Natal que passo aqui”! É uma oportunidade que Deus está dando para pensar nas coisas que fez, refletir e ver tudo o que você tem de bom para mudar essa situação. E daqui pra frente será o único Natal que vai passar longe de sua família. Aproveitamos todos os momentos para que ele se corrija, se transforme e desenvolva o bem em sua vida.
”...Deus mandou o seu Filho para salvar o mundo e não para julgá-lo.” João 3:17
MM: Onde você consegue essa força?
RA: Só pode vir de Deus. Eu oro todos os dias. Agradeço quando saio daqui porque Ele está me dando a oportunidade de ajudar as pessoas. Quando venho, pela manhã, peço forças e sabedoria, pois sem sabedoria não se faz nada.
MM: Suas filhas apóiam em seu trabalho?
RA: Converso muito com elas e elas me dão muita força. Elas dizem que eu sou uma boa mãe e reconheço que sou imensamente abençoada por Deus. Com todos os percalços que passamos aqui, sou feliz. Tenho completa identidade com meu trabalho.
