Como seria o Natal sem as histórias sobre a natividade que constam dos Evangelhos de Mateus e Lucas? O nascimento de Jesus é rico em ilustrações que inspiraram inúmeras obras de arte, ao longo dos séculos, e que mostram anjos anunciando o nascimento virginal a Maria e a José. Os cristãos em todo o mundo imaginam a jovem Maria grávida, viajando cerca de 128 quilômetros até Belém, no lombo de um jumento. Então, embora o casal tenha procurado por um quarto quente e aconchegante em uma estalagem, o bebê Jesus acabou vindo ao mundo em um estábulo rústico e humilde. Sobre uma colina, um coro de anjos cantou anunciando o nascimento aos pastores, que correram para poder ter o primeiro vislumbre do bebê recém-nascido. Mais tarde, os “Reis Magos” trouxeram preciosos presentes para Jesus.
Os cristãos sempre amaram e celebraram essas histórias sobre o nascimento de Jesus. No entanto, como uma nuvem de dúvida que paira até hoje, uma questão se arrasta desde a era do Iluminismo, no século XVII, com relação à autenticidade das narrativas sobre a natividade.
Seriam os relatos sobre a natividade fatos ou ficção? Em seu livro “The First Christmas” (O Primeiro Natal), os autores Marcus Borg e John Dominic Crossan questionam se a veracidade sobre essas histórias seria ou não a questão principal. Eles apresentam outra possibilidade, a de que essas histórias sejam parábolas ou alegorias para serem interpretadas de forma metafórica, e não literal. Portanto, se considerarmos as histórias da natividade que constam em Mateus e em Lucas como parábolas repletas de um significado mais profundo do que simplesmente detalhes específicos, então a verdadeira questão não é se as histórias são fatos ou ficção, mas o que realmente significam para nós. Será que haveria outra história da natividade?
As narrativas sobre o nascimento em Mateus e em Lucas foram publicadas cerca de 70 a 80 anos após o nascimento de Jesus. Embora o cristianismo estivesse crescendo, os céticos e os críticos continuavam zombando de Jesus como o Messias. Rumores sugeriam que Jesus era apenas um bastardo, nascido fora do casamento. Portanto, é plausível que os autores dos capítulos de Mateus e de Lucas intentassem corrigir essas graves acusações com a inclusão das histórias sobre o nascimento de Jesus.
Normalmente os cristãos combinam os relatos da natividade em Mateus e Lucas em uma única história, porque essas narrativas têm estes elementos em comum:
• José ficou noivo de Maria
• Maria, uma virgem, concebeu um filho do Espírito Santo
• Anjos anunciaram o nascimento a Maria e depois a José
• O nascimento de Jesus aconteceu em Belém
• Jesus era o Messias prometido e sua missão era salvar
• A genealogia ligava Jesus a Davi, por meio de José
• O nascimento de Jesus ocorreu durante o reinado de Herodes, o Grande
• O lar de Jesus era em Nazaré
• O nascimento de Jesus foi o cumprimento da profecia
Alguns estudiosos argumentam que as histórias são diferentes demais para serem combinadas. Elas foram escritas para públicos diferentes do primeiro século. Mateus dirige seu relato aos judeus, que conheciam a profecia bíblica e esperavam por um Messias real e majestoso da casa de Davi. Por outro lado, Lucas dirige seu relato aos convertidos cristãos gregos, que podiam valorizar um Messias de origem modesta e humilde.
O relato em Mateus indica que Maria e José viviam em Belém e eventualmente mudaram sua residência para Nazaré. Lucas os coloca como cidadãos de Nazaré, e que foram a Belém para serem recenseados e, em seguida, retornaram a Nazaré.
Mateus fala sobre os Reis Magos, que seguiram uma brilhante estrela até Jerusalém. Perguntaram ao rei Herodes onde poderiam encontrar o recém-nascido rei dos judeus. Essa pergunta indignou Herodes, porque ele se considerava o rei dos judeus. Herodes instruiu os Reis Magos que continuassem a seguir a estrela-guia, mas que depois retornassem para lhe dizer onde a criança poderia ser encontrada.
A ideia de que havia três homens, frequentemente representados como três reis viajando do extremo leste da Pérsia, Arábia, ou lêmen, provém da história dos três presentes: ouro, incenso e mirra. Alguns pesquisadores sugerem que um contingente particularmente grande, possivelmente dezenas de sábios (talvez estudiosos notáveis), viajando com suas comitivas de servos e guardas, seguiram a estrela de Belém. Mais tarde, quando os Reis Magos não retornaram para contar a Herodes onde ele poderia encontrar a Jesus, Herodes ordenou a matança de crianças de dois anos ou mais novas. Este relato em Mateus oferece ao público judeu uma possível ligação entre Moisés e Jesus, pois, no momento do nascimento de Moisés, o faraó do Egito também havia ordenado a morte de todos os meninos hebreus.
Por outro lado, a narrativa do nascimento de Jesus no livro de Lucas, se parece a um diário do bebê escrito por Maria. Ele tem bem mais pormenores do que o relato em Mateus. O Evangelho de Lucas inclui detalhes de como ela viajou de Nazaré a Belém sobre um jumento (detalhes que Maria pode ter compartilhado com o próprio Lucas ou com alguém que conheceu Lucas). Pareceria muito natural que essa mãe, contando a história do nascimento de seu filho, incluísse na narrativa o quão difícil foi encontrar um lugar para dar à luz. É provável que uma jovem mãe judia, ao contar a história do nascimento de seu filho, mostrasse como os acontecimentos que se seguiram ao nascimento estavam de acordo com os costumes judaicos. Por exemplo, segundo o costume daquela época, amigos e familiares aguardavam do lado de fora da casa para saber se a mãe teve um menino ou uma menina. Se fosse menina, todos voltavam para casa em silêncio. Se fosse menino, eles começavam a cantar. O filho de Maria não foi privado desse costume. Lucas fala sobre os pastores humildes que vieram visitar o recém-nascido, e sobre os anjos que propiciaram a eles um coro celestial.
Para a maioria dos cristãos (e até mesmo muitos que não são cristãos), pode ser difícil imaginar o Natal sem os relatos do nascimento de Jesus contidos em Mateus e em Lucas, por mais diferentes que possam ser, porque esses dois livros são os únicos evangelhos que registram o nascimento de Jesus. Entretanto, será que existe algum outro relato que tenhamos esquecido? Seria possível que o Evangelho de João nos desse outra concepção da natividade de Jesus, ou, talvez, a mais verdadeira?
Mateus e Lucas descrevem o início da existência humana de Jesus. No entanto, o Evangelho de João não inclui nenhuma narrativa do nascimento, mas nos diz: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (1:1). Enquanto os dois relatos anteriores chamam a atenção da igreja cristã primitiva para as raízes Davídicas do Messias, e para o fato de que tanto a chegada de Jesus quanto sua vida estão ancoradas na profecia, João nos dá um relato da criação, ecoando as primeiras palavras do primeiro capítulo do Génesis: “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (1:1). Deus criou! Macho e fêmea são “criados” por Deus, o Espírito! Estaria o Evangelho de João nos dizendo que, em realidade, nem Jesus nem qualquer um de nós nasceu da carne, mas, ao contrário, inteiramente do Espírito? Estes versículos de João certamente o confirmam: "Mas, a todos quantos o receberam, deulhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus" (1:12, 13).
João também inclui a história de Nicodemos, um líder judeu, que uma noite visitou Jesus secretamente. Quando Nicodemos reconheceu que Jesus devia ter vindo da parte de Deus, porque nenhum homem sobre a terra poderia fazer os milagres que ele fazia, Jesus expôs a necessidade de todos nascerem de novo e disse: “Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus” (João 3:5). Em grego, o termo de novo significa "do alto". Jesus concluiu suas observações a Nicodemos com estas palavras: “Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem [que está no céu]” (João 3:13).
Estaria Jesus nos dizendo que precisamos ver a nós mesmos como nascendo do alto e não aceitar uma existência terrena, ou uma história de natividade para nós mesmos? Mateus e Lucas atenderam às necessidades do mundo com uma história de nascimento e existência humanos. Entretanto, a visão que João nos apresenta não rouba de nós nossas preciosas histórias de Natal. Podemos continuar examinando a profundidade dessas histórias em busca de um novo significado. Contudo, o relato de João pode expandir nossa percepção a fim de adotarmos nossa verdadeira natividade, exatamente como Jesus o fez, nascendo de Deus, do Espírito, e não da carne, encorajando-nos a viver ainda mais de acordo com nossa natureza espiritual.